Blog Marina Wisnik

CÚMPLICES PÁSSAROS - Divagações sobre pássaros de variados tipos (parte 1)



    a arte do voo livre
    dedos que doem na labuta
    e plumas de pavão
    alívio que gira e alça o céu
    sublima


    pé firme, planta no chão e asas imensas,
    salto para o nunca,
    o abismo
    o hoje


    respira o mundo por todos os poros
    o cheiro das flores agora É ela
    nada separa
    centésimo, segundo
    espaço entre cada partícula
    voa e dói
    porque a carne é viva


·              *  imagem 1: “A primeira bailarina” de Degas
·              *  imagem 2: Retrato de Pina Bausch
·              *   imagem 3: Retrato de Clarice Lispector


REVER

Não sou muito adepta da explicação do que se cria, mas tive vontade de divagar um pouco sobre os motivos que me fizeram compor a minha última canção, Rever.
A palavra “divagação“ está, inclusive, bastante ligada a tudo isso.  Gosto muito do devaneio, da associação livre, da atmosfera de sonho, onírica.  Inclusive nas minhas oficinas de criação poética prezo muito isso, por manter-se uma atmosfera protegida da relação entre “certo” e “errado”.
Vejo as minhas músicas como um mergulho nesse lugar, um mergulho para dentro onde surgem imagens e fluem, associando-se umas às outras sem compromisso propriamente com uma amarração final. Como fragmentos em fluxo.
A canção Rever fala sobre uma necessidade que surgiu em mim, de uma porção de aterramento no meio desse sonho, que tanto prezo. Mas esse ímpeto apareceu não só em relação ao que faço, mas também em relação ao que vejo e ao nosso mundo como ele se organiza.
A proporção imensamente virtual que tomou as nossas vidas, das janelas que se abrem, múltiplas, formando as redes, desfazendo as raízes, têm tornado o “fazer arte” cada vez mais ligado às relações horizontais do que verticais. Onde predomina o “sentir” ao “pensar”. Se observarmos as redes que articulam e determinam a nossa forma de se expressar e relacionar, a base é o “like”. E assim as relações se organizam a partir do “curto” ou “não curto”. “Aceito” ou não “aceito”. Esse “eu sinto” se tornou o centro da comunicação que rege todas as engrenagens. O nosso poder.
Essa música Rever é como que uma reflexão sobre a necessidade de se “pensar” também, além do “gostar”. De se comunicar, tendo-se “os pés no mesmo lugar”. Aterrar, ver o outro, compartilhar algo que seja mais concreto e objetivo.  Afinal “o sonho, você tenta segurar/ a terra, não dá pra derrubar”.

REVER

por querer, por tentar
pra poder descansar
trago um sonho que ecoa
nos quatro cantos deste lugar
mas aquilo que não se toca
talvez não possa recordar
e voa, corre por qualquer lugar
é pássaro para não voltar

pra dizer, revelar
vou rever, vou olhar
se o que sonho, e que ecoa
também no entanto te faz pensar
é aquilo que nos toca
é os pés no mesmo lugar
o sonho, você tenta segurar
a terra não dá pra derrubar

RAUL ME ACORDA PRO AGORA

Escrevi o texto abaixo em abril de 2012. Pelo fato de ter revisto o filme, fiquei com vontade de publicar aqui.


Vi hoje o filme do Raul Seixas e adorei. Me tocou e me fez refletir sobre diversos aspectos da minha vida pessoal e do tempo em que vivemos. É fato que uma série de documentários, principalmente sobre música e músicos, nos dão uma injeção de ânimo e nos fazem lembrar  que a vida pode ser vivida de maneira mais intensa. E acabam por nos fazer refletir sobre o fato de que no passado, (em diversos contextos) a ebulição cultural unida a engajamentos (não necessariamente políticos) permitia que a experiência de coletividade fosse vivida de maneira mais plena, entregue e afetiva.
“Uma noite em 67”, o documentário dos Titãs, sobre o Vinicius, Itamar, sobre os Beatles, entre tantos outros, nos levam a ter contato com artistas extremamente vivos, que foram, de diferentes maneiras e em diferentes décadas, porta vozes dessa experiência de vitalidade.
Diante de filmes como estes, somos levados, por um lado, a ter uma conclusão nostálgica e não muito inovadora de que vivemos em tempos que não propiciam muito a intensidade, e por outro, somos acometidos por uma vontade de querer dar mais para essa experiência que é estar vivo. Vontade de ir mais até o fim no limite das diferentes entregas, sem economias.
O filme do Woody Allen “Meia-noite em Paris” diria que isso todo é uma ilusão e que o passado parece sempre melhor. Isso é, em parte, verdade. E alguma outra voz, vinda de dentro de mim, poderia dizer que estamos vivendo em São Paulo e no Brasil um momento de efervescência cultural e musical. Fato também. Mas não me refiro à produtividade quando faço essa reflexão um tanto nostálgica, me refiro à relação que temos tido com o presente, com as trocas reais e sobre algumas restrições a que temos sido expostos ligadas a um ideal de “saúde” e “bem estar”.
Tenho tido um real incômodo em relação ao rumo que as coisas tão tomando nos nossos tempos.  Por exemplo, a lei do psiu, a restrição de não se fumar em nenhum estabelecimento, e agora, de não se poder beber na rua. Limites que vão sendo impostos de maneira cada vez maior unidos a uma virtualização um pouco exagerada das relações - Essa sim, completamente sem limite.  Estamos inseridos nessa realidade que, por um lado, nos propicia o contato com tudo ao mesmo tempo agora através do virtual, por outro, nos apresenta restrições cada vez maiores no que se refere a facilitadores da socialização real.  E assim vamos perdendo no deleite das trocas, dos riscos. Perdendo na relação com a intensidade, com o presente e a aventura.
Escrevo esse texto porque valorizo profundamente os três itens citados acima: a Intensidade, o Presente e a Aventura. E apesar de eles estarem um pouco sem lugar escrevo para declarar meu amor a eles. Apesar de ver o Raul e tantos outros que se jogaram tão intensamente na vida, os afetos, nas drogas, de maneira a se destruírem, digo que um pouco de risco, de presente e de troca real são necessários, também à saúde. Sem eles, a coisa fica sem graça.
Dessa maneira, Raul me acordou pro agora, hoje. Sugiro que a gente nunca se esqueça de misturar uma porção de “maluquez” na nossa “lucidez” ou vice-versa.  E por fim:

- Toca Raul!

VIOLÃO DE CINCO CORDAS

Revendo papéis virtuais aqui, me deparei hoje com uma poesia feita pelo poeta Paulo Neves. Quando comecei a compor músicas, em 2007, ele veio numa tarde aqui em casa com meu pai. Almoçamos, caminhamos pela Santa Cecília e depois, eu e Bruna, minha grande amiga, mostramos algumas músicas que tínhamos feito. Na época eu tocava com um violão sem a corda ré, porque ela tinha estourado e eu acabei compondo músicas desse jeito.
Algumas semanas depois, Paulo me mandou essa poesia.
Com seu poder de visão e cristal, me devolveu o que tínhamos vivido naquela tarde.
Paulo é meu padrinho, e me dá presentes como este poema.
Outro presente é o prefácio do meu livro de palíndromos "SÓS", que lancei em 2009 e que terá nova edição daqui a um mês.
Eis o poema de Paulo Neves:


VIOLÃO DE CINCO CORDAS
(Fim de tarde em Santa Cecília)

para Marina e Bruna

A luz oblíqua do sol
põe na parede do edifício
branca e carcomida
um pungente sinal.
Estive aqui
quarenta anos atrás.

Mas percorrer as ruas,
rever as árvores altas
da Dona Viridiana,
o velho prédio de tijolos
da Santa Casa,
é só uma aproximação.

A memória não restitui
o inaugural
senão por outras vozes.
E são elas, é com elas
acompanhadas de um violão
de cinco cordas

que o meu coração encontra
na corda ausente
o que lhe ardeu na antiga tarde
– um puro amor,
um puro amor impossível
que ainda arde.

NÓS SÓS

Quero falar hoje sobre um filme que vi recentemente e me tocou muito. Chama-se “Olhos de Ressaca”.
É um curta metragem dirigido por Petra Costa, que lançará, em maio, o seu primeiro longa: “Elena”.
O filme tem como eixo seus avós, Vera e Gabriel, que estão casados há mais de 60 anos.
Costurando seus depoimentos e lembranças com imagens do presente e do passado, cria-se um fluxo contínuo de poesia, instaurando-se um universo onírico e delicado.
Gosto da maneira como o filme consegue criar uma atmosfera de profundo silêncio, mesmo não sendo composto do mesmo. Como se nos transportasse para um hiato entre a realidade e o sonho, onde paramos pra refletir sobre essas duas vidas que caminham juntas.
Ser dois, ser um e ser...
A luz, o branco, as imagens sobrepostas, as falas, o tempo que se dá para cada segundo... Levam-me, como a ressaca do mar, para o fundo dessas águas de imagens e associações.
Sonho e devaneio sobre a vida.
Dentre as muitas imagens que me tocam nesse filme, ressalto a da sobreposição de gaivotas nas fotos.
Fotos antigas dos avós, dos familiares, ecoando no céu. O infinito que é cada um.
Isso me lembra dois palíndromos que fiz há anos:

O CÉU EM MEU ECO

e

SÓ NÓS
SÓS
SOMAMOS

O eco dos nossos antepassados ressoando em nossos céus. Mostrando-nos a medida em que somos eles e somos nós.
Estamos juntos e estamos sós.

PARARNALDO ÀS AVESSAS

Eu sempre soube que um dia precisaria falar sobre o Arnaldo Antunes.
Pela importância que ele tem pra mim.
Pela importância que ele tem pra muitas pessoas que são tocadas pelo seu trabalho.
Apesar de ser relativamente próximo ao meu pai e a diversas pessoas que eu conheço, tive poucas conversas com o Arnaldo, todas muito rápidas. Sempre fiquei um pouco desconcertada ao lado dele. Talvez pelo seu jeito próprio, grave, denso e, de certa forma, tímido.
Na infância, numa viagem a Campos de Jordão em que estávamos na mesma casa, quando eu me via somente com ele numa sala, numa sauna, ou cozinha, ficava sem graça, acabava dando um jeito de zarpar.
Uma vez, nessa mesma viagem, me deram uma travessa de ovos de codorna para oferecer aos adultos e me mandaram pra sala onde só havia o Arnaldo, amarrando o sapato da filha, Celeste. No meu desacerto entre oferecer e voltar pra cozinha derrubei todos os ovos no chão e me vi, em seguida, com ele e sua filha, tendo que recolhê-los um a um.
Talvez esse meu comportamento na infância já pressentisse a admiração artística que iria se configurar alguns anos mais tarde.
Aos 17, quando teria que fazer uma monografia de português na escola, um estudo mais aprofundado sobre algum tema, decidi que estudaria sua obra. Ele era então recém saído dos Titãs com três discos na carreira solo, "Nome", "Ninguém", "O Silêncio", e alguns livros como "Psia".
É difícil explicar nessas poucas linhas a transformação que se deu no meu olhar sobre poesia, música e o fazer artístico. Talvez a própria monografia - que eu já não tenho mais - explicasse melhor. Mas ela ficou plantada em mim. E me transformou profundamente.
Vi no seu trabalho o mergulho - sem medo da música - na palavra desconstruída. Vista sob outras óticas. A palavra-coisa. Fui com sua poesia para dentro do "buraco do espelho", entendendo que o "dentro" pode ser "de fora de si". Compreendi que poesia é espaço aberto onde cabem múltiplas realidades. "Dois ou mais corpos no mesmo espaço". Paradoxo.
Os anos se passaram e vieram outros discos, livros. E nós, público, cantamos e meditamos sobre "As árvores", sobre "O sol", sobre o tempo, sobre a velhice, a infância, a morte, o amor, a inveja, o olhar, o corpo, o caber, o não caber... sempre de forma inédita, afetiva, generosa com a vida e sua tentativa de compreensão. Fazendo caber em palavras o que transborda ao nosso entendimento, recriando entendimentos por trasbordar as palavras.
Arnaldo tem um público não sei se grande ou médio, comparado às massas atingidas por outras figuras ou grupos, pode ser até pequeno. Não importa. O que importa é que ele é real  e profundamente admirado por muitas pessoas da minha geração entre outras, que suas músicas e seus discos estão entranhados em nossas vidas, nos ensinando a olhar, reinventar o olhar e sentir. Ser por inteiro, sabendo-se parte.
Nome, O Silêncio, Ninguém, Paradeiro, Um Som, Saiba, O Corpo, Iê Iê Iê, A curva da cintura. Psia, Tudos, Dois ou + Corpos no Mesmo Espaço, n.d.a. e assim por diante.
Sempre tive vontade de agradecê-lo. Apesar de ter falado com ele uma ou outra vez sobre o tema, nunca achei meios de fazê-lo. Fica aqui, então, o registro virtual. Para Arnaldo.

MAR, MISTÉRIO, CANSAÇO E SONHO

Sonho com mar há muito tempo. Sempre.
Eu na superfície. O mar por baixo que não vejo.
Mistério, silêncio, sonho. Presença ausente, daquilo que se prevê.
Durante um tempo, nos meus sonhos, eu me via numa baía, nadando. Terra a vista. Longe, por todos os lados. Noite.
Em outros sonhos eu estava na praia, vazia. A onda que vinha pra fora.
A onda tomava a cidade. Subia as montanhas. Não se cabia.
Esse quase infinito de água e mistério nos remete à condição de ser só. E ser frágil.
Na peça “Mistérios gozosos”, de Oswald de Andrade que, na década de 90, Zé Celso montou e meu pai musicou, há um trecho de uma música que diz “Há um grande cansaço de explicar o mar”.
Há um grande cansaço de explicar o mar.
Seu ritmo de silêncio profundo, sua toada exausta, de ir e vir. Saber-se imponente. Solto e sempre.
Explicar e ser mar geram exaustão. E apesar dela a busca é infinda. Busca e devaneio. Navegar nas ondas das imagens que se debruçam, generosamente.
Nos meus sonhos ele é mais forte do que o real. Quando vou à praia não é ele que vejo.
Chamo-o de oceano de trás. Ele que mora em mim. Nas costas. Como que formando asas.
Ele que me lembra do que sou.